Um brasileiro em Berlim - João Ubaldo Ribeiro
RIBEIRO, João Ubaldo. Um Brasileiro em Berlim. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2004.
João Ubaldo Ribeiro serve como exemplo de um estrangeiro brasileiro na Alemanha, para mostrar em páginas descontraídas de relatos, as experiências de noções de identidade e alteridade, numa surpresa descoberta das condições da sua própria identidade nos contextos culturais e abstratos de outra civilização, em comparação com os hábitos e tratos da sua cultura.
Podemos pensar, na visão cultural, um invasor no território alemão trazendo novos costumes, com o perigo de uma reconstrução da nacionalidade local, como se as pessoas não estivessem sendo visitadas, e sim invadidas. Ou seja, um intruso com práticas inaceitáveis, principalmente em relação à língua.
Logo no capítulo Chegada (p. 11), durante o embarque no avião e o voo para Berlim, o autor vai se comparando a coisas sem valor, como os búfalos, das bagagens, das escalas etc. Quando a filha Chica pergunta se a Alemanha é maior que o Brasil, ali começa o choque cultural. O Brasil tem 8.500.000 km2, e a Alemanha tem apenas 356.000 km2, mas a Alemanha é o país com mais inventos no mundo, e um analfabetismo que não chega a 1%.
O que a narrativa nos mostra é a cultura de deslocamento com os seus paradoxos marcando que diferenças sempre existirão, logo a partir da língua que desconhecemos, como observamos na crônica O tartamudo do Kurfürstendamm (p. 17), onde o autor demostra as dificuldades sob o ponto de vista linguístico, e de modo irreverente irônico se assume, como “tartamudo“ – gago ou sem noção do que fala, perdido em terra estranha, convivendo com os outros tão diferentes da sua cultura. Quando um amigo fala ao telefone que alemão não gosta de alemão do outro lado, e que nosso Tartamudo parecia com um polonês, romeno ou búlgaro, sentiu-se também um inimigo e decidiu comprar um dicionário para falar ainda melhor o alemão deles.
Em Sexy Brasil, Sexy Berlim, aparece um primeiro conceito a respeito dos habitantes da terra do visitante, visto como uma imagem concreta e personificada de seres eróticos, e também de exóticos índios da Amazônia, como se assim fosse todo o território nacional, além de focar-nos em estereótipos banais mergulhados em Carnaval, praias e das mulatas bonitas que “fariam Messalina – a adúltera esposa do Imperador Claudius, de Roma, parecer uma irmã de caridade”. Este conceito do erotismo traduz o pensamento de que no Brasil as mulheres são sexualmente disponíveis. A liberalidade alemã faz com que passe na TV cedo da noite o programa Sexy Berlim, com senhoras intimamente expostas. Mesmo assim, os alemães não são tão liberados, descrevendo-os como um povo sombrio, sem graça e fechado, mesmo sendo natural ficarem nus em público, para tomar sol nas praças e trocar uns beijinhos amistosos na frente dos outros.
Naquele velho mundo tratam o brasileiro como ser primitivo e inferior, como se aquele povo sul americano fossem ainda uns índios selvagens e bárbaros, vivendo na mata ou nas periferias das cidades, manifestado como um forte atraso tecnológico e cultural, mas ainda um bom selvagem, primitivo, bem ao gosto do discurso dominante a partir do século XIX, dentro da nova noção perspectiva de preservação e valorização cultural, à medida que o centro se apropria do discurso da alteridade.
João Ubaldo Ribeiro entra na ironia e se diz índio genuinamente brasileiro, somente para satisfazer as expectativas articuladas sobre ele, um ilustre visitante de terras mais atrasadas.
Em A velha Cidade Guerreira (p. 29) o autor do texto tenta não relembrar o que menos os alemãs querem ouvir: as peripécias de Hitler, um austríaco que manchou e abriu uma ferida exposta que sempre maltrata a alma dos alemãs. Prefere lembrar dos grandes vultos culturais da terra fria, contrastando com as indiferenças entre os próprios alemãs do leste, que mesmo depois da queda do muro entre as terras, os ocidentais se sentem intrusos na parte oriental.
João Ubaldo se vê encaixado nas paisagens do ambiente, mas com medo das pessoas.
Na realidade, o olhar do sujeito local em relação ao outro que chega, pode ser traduzido pelo receio de possíveis abalos na própria identidade, procurando firmar-se como cultura autêntica, a fim de se preservar, ao mesmo tempo que confronta a sua perspectiva com o exterior, ao encarar tantos traços diferentes do seu ambiente originário. Até mesmo em sua própria pátria.
Outro contraste de cultura é a Educação financeira (p. 35), onde o autor se diz parco em seus recursos financeiros, pois não é comum se encontrar com escritores ricos. Quem mais ganha não é o escritor. Outra coisa: no Brasil não há dinheiro. A moeda mudou tanto nos últimos 50 anos, que deixaria qualquer um alemão louco, com uma inflação de três dígitos ao ano. No Brasil ninguém pega moeda no chão. Não vale nada mesmo. Na Alemanha, não. Deus seja louvado – é a frase que deu certo na moeda brasileira a partir do Real.
Na Vida organizada, podemos ver as diferenças mais visíveis, citando exemplos de palavras que não representem o mesmo significado para os povos dos dois países amigos. Pela falta de organização, diz o autor, se o Brasil fizesse fronteira com a Alemanha, e tivesse graves problemas, não haveria guerra, pois o Brasil sempre chegaria atrasado. Encerra contando que foi convidado para fazer uma palestra, mas por falta de organização e muita preguiça, coisas de brasileiros, não deu a menor atenção e foi dormir.
Na crônica O crime do Storkwinkel (p. 47) fica ilustrada a acentuação dessa construção da identidade dos componentes, principalmente na reação do sujeito que tem medo da polícia, como aquele brasileiro, um ilustre dissidente político na época da ditadura militar. Ao receber uma visita por dois policiais em seu apartamento, João Ubaldo passa apertado. A mulher acalmou dizendo que “eles aqui não batem”. Eles pediram a chave do sótão, mas na casa não tinha nenhuma chave de sótão. Os policiais sorriram e foram embora.
Somente no dia seguinte ele ficou sabendo que o “crime” foi alguém que roubou a churrasqueira de um morador do prédio. Para fazer a política da boa vizinhança, João Ubaldo sugere a sua esposa que comprem uma churrasqueira nova e coloquem na porta do morador roubado.
Surgem os Problemas do intercâmbio Cultural (p. 53), quando as diferenças se acentuam, desde o hábito de leitura dos alemãs. O nosso brasileiro em Berlim imagina uma história quando uma mulher coordenadora do lançamento do livro e noite de autógrafos de João Ubaldo, mas terá dificuldade de contratar uma baby-sitter, que ganha mais do que os profissionais de cultura, o que faz o escritor pensar em deixar a literatura para se dedicar a área culinária, para dar seguimento à sua fama de mestre-cuca na cozinha.
No episódio das Batalhas Culturais (p. 59) o autor fala das dificuldades de quem se mete a ser embaixador cultural, ocupando-se mais das suas andanças culinárias pela Alemanha. Conta do dia em que o amigo de Bento, seu filho, por nome de Marc foi comer em sua casa uma comida baiana, comendo tudo e ainda repetido.
Noutro dia, chegaram novamente os dois, na hora do almoço, mas Marc dessa vez não quis nada e explicou que a comida deixa cheiro de alho na boca, por isso a mãe reclamou.
Depois de alguns dias Marc apareceu e se ofereceu para comer. Tal foi o espanto, mas ele explicou que a mãe havia deixado. Como? Ele falou que se ela não deixasse, João Ubaldo iria chamá-la para todas as leituras e mandaria os seus livros dela para ela ler.
Como não podia deixar de ser, O inverno, este desconhecido (p. 65) foi a parte fria de temperatura que faltava no livro. As comparações com o verão de Itaparica, sua terra natal, foi inevitável. As horas em nada se pareciam agora com o Brasil. Somente as dez horas via-se os raios do sol, mas foi uma fase que a família muito curtiu. Nas horas mais frias, ligavam Manfred, o aquecedor, que só funcionava se dessem uma alisadinha do lado direito. A sua fama de mentirosos eclodiu quando quis pescar com o filho em lago congelado. O filho disse que não iriam fazer isso, pois já estava preocupado com o que os amigos de Itaparica iriam pensar sobre as conversas que sua mãe tinha com o aquecedor. Pescar então, em lago gelado, nem pensar.
Parecem que todos os índios são iguais? Então como seriam Os índios de Berlim (p. 71)? Os alemãs pensam que todo brasileiro é índio, e que o Brasil é uma só Amazônia. Portanto, visitantes se informem a respeito. Nessa crônica, João Ubaldo descreve um diálogo, com o seu interlocutor vendo à sua frente um indígena brasileiro. Mas ele é sincero e diz que nunca viu a Amazônia. Cai o teto. Ninguém acredita. E se já viu algum índio. Ah! Isso ele vê todo dia no Rio de Janeiro, uns duzentos ou trezentos. Ele diz que o seu tipo físico é característico de índio, e assim é toda a sua família. O que aconteceu? No dia seguinte, um produtor já ligou para a casa dele e queria contar com a sua experiência indígena para produzir uma peça para a rádio sobre a Amazônia e precisa de vozes infantis dos seus filhos. Ele pensou e respondeu: certo! Se precisarem da voz de um cacique, eu faço. Quanto pagam?
O que a gente faz pela Alemanha? Andar Procurando o alemão (p. 77), o que parecia fácil foi se tonando cada vez difícil. Em conversa com o amigo Dieter, que ele pensava que era alemão, o nosso cronista se surpreende. Ouviu que Berlim não é a verdadeira Alemanha. Como? Tem gente do mundo todo aqui. Até a Língua tem várias vertentes. João Ubaldo então foi visitar Munique, mas encontramos bávaros, pessoal da Baviera. Ao final da crônica, o redator mostra-se preocupado quando voltar ao Brasil e dizer que foi à Alemanha mas não viu a Alemanha.
Um estranho no ninho sempre vai ter seus momentos de Pequenos choques (quatro anotações de um visitante distraído) (p. 83).
O primeiro choque aconteceu quando foi a um show no bairro do Halensee e as garçonetes serviam seminuas, mas como era tão natural, ninguém olhava, e diziam que ali não havia sexo, e sim mulheres nuas. Nas praça do bairro também elas tomavam sol seminuas. Como bom brasileiro, ele diz que não vai mais ali naquele bairro em dia de sol.
O segundo choque foi em relação à bandejinha colocada nos locais peto da registradora, para que sejam efetuados os pagamentos das contas, retirando o troco, se tiver. No taxi do Brasil, fala do Rio de Janeiro, quem pede a conta é o passageiro. Lá na Alemanha é o contrário. O taxista para desliga o carro e apresenta a conta.
O terceiro choque foi o tráfego. Os turistas ficam observando a educação dos motoristas. Dois alemães atravessando a rua sem sinal não fica preocupado, pois o motorista vê e para. No Brasil os dois diriam, sai da frente que ele já nos viu. Em Berlim os ciclistas é quem atropelam.
O quarto choque foi o olhar, tão ausente na Alemanha. Lá ninguém olha para ninguém. Só os brasileiros, principalmente quando passa uma mulher bonita e vistosa. Ficou com saudades de casa.
Quando chega a hora de ir embora, é o momento da Despedida (p. 93), arrumando as coisa do apartamento para voltar ao Brasil, enquanto se espera os novos inquilinos. Ficaram conhecidos pelos vizinhos, o carteiro, supermercado, e de muitas crianças. Aquela casa em Berlim deixaria saudades. Adeus Berlim, aos poucos leitores e amigos. A Alemanha já se tornou uma amiga com certa intimidade.
A volta para o Rio de Janeiro estava cheia de lembranças da Storkwinkel 12, Rio. Muitas novidades culturais, desde corte de cabelos, dinheiro, algumas gírias, alimentação e clima. Tudo para fazer agora uma nova readaptação em seu próprio País. Saudades, sim, dos cinemas, bicicletas, bonecos de neve, o boteco do Ku’ damm, as praças, o trânsito. Lá o diferente é visto com desconfiança ou desprezo. O fanatismo substitui a razão. Mas tudo isso é a diversidade, que é a glória do homem, que não deve ser rejeitada. Foram 15 meses inesquecíveis em Berlim.
João Ubaldo Ribeiro descobre-se perdido inicialmente numa outra unidade cultural, fazendo comparações jocosas com hábitos transnacionais e até mesmo banais, como aquela forma de pagamento numa bandejinha, ou até mesmo o rigor de horário dos alemães em combinar um encontro, com precisão e antecedência, coisa impensável para um inferior brasileiro.
Pode-se entender como uma autenticação da diferença partindo da identidade subjetiva por fatores de adaptação das duas culturas, para que aja a comunicação, dentro da pluralidade cultural, desde que aceitas as condições individuais.
Permanecendo ali, certamente haveria uma reconstrução da sua identidade, com a incorporação das vivências individuais no dia-a-dia, sendo aos poucos cooptado pela cultura de Berlim.
O texto reflete o conceito das noções das diferenças tratadas no âmbito da identidade e alteridade, mostrando que tantas as internas quanto as externas podem implicar nas convergências e divergências culturais, quando se estuda as bases dos elementos que constituem a identidade. Cada um vai se posicionar individualmente, mas as suas visões conceituais vão se tornando perceptivas e generalizadas no coletivo.
Identidade e alteridade (o "eu" na sua forma individual só pode existir através da integração com o "outro").
Os conceitos de identidade e alteridade apresentam uma relação de reciprocidade. A alteridade se constitui pela mera presença do outro diferente de mim, de forma abstrata ou concreta, para que possamos definir nossa identidade cultural que corresponde à perspectiva de uma história em determinado coletivo, numa vivência comum acumulada em todo indivíduo pertencente ao coletivo. A identidade, inicialmente, parte de pontos heterogêneos dentro de um grupo, com seus aspectos internos diferentes no conhecimento e práticas dentro e fora da comunidade.
No contexto de Um brasileiro em Berlim, a percepção do outro permanece originalmente distante, mesmo com a existência de um processo de aproximação, quando o articulista procura manter cada indivíduo com as suas características plurais, ciente de que tudo é muito improvável, a opção do cronista deve ter sido contar as disparidades com muito humor, para não cair no ridículo, procurando manter o texto fiel às contradições. Obrigando o leitor a se informar mais da Alemanha, e até se interessar pela sua língua e cultura.
REFERÊNCIA:
RIBEIRO, João Ubaldo. Um Brasileiro em Berlim. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2004.
João Bosco do Nordeste
Enviado por João Bosco do Nordeste em 05/03/2015