Calvino - Seis propostas para o próximo milênio
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
Segundo o escritor Italo Calvino, a Leveza, a Rapidez, a Exatidão, a Visibilidade, a Multiplicidade e a Consistência são as seis proposições de virtudes que a literatura pode salvar. Esses textos foram preparados até a quinta proposta, quando o autor morreu, sem nunca ter proferido as palestras. Portando, a sexta proposta, que ficou com o nome de “Consistência” jamais foi conhecida.
Introdução
Em 6 de junho de 1984, Calvino foi oficialmente convidado a fazer as Charles Eliot Norton Poetry Lectures - um ciclo de seis conferências que se desenvolvem ao longo de um ano acadêmico (o de Calvino seria o ano letivo de 1985-86) na Universidade de Harvard, em Cambridge, no estado de Massachussets.
Este é o início do prefácio escrito por Esther Calvino para o livro Seis Propostas Para o Próximo Milênio, publicado pela Companhia das Letras, de Italo Calvino, nascido em Santiago de Las Vegas, Cuba, filho de pais italianos e um dos nomes mais importantes da literatura européia deste século.
Neste trabalho, a preocupação de Calvino era a de demonstrar quais os valores literários que mereciam ser preservados no curso do próximo milênio.
Mas o que isso tem a ver com as empresas? O brilhantismo dessas idéias merece a analogia e a transposição para a reflexão de profissionais de todas as áreas.
1 – Leveza
É uma qualidade que se traduz como a retirada do peso da narrativa e da linguagem na obra literária, que desde o início de sua carreira já buscava a identificação entre as coisas do mundo e o ritmo de escrever, numa sintonia entre o dramático e o grotesco, tentando relatar a época, como uma obrigação de todo jovem escritor.
Ao discorrer dessa primeira proposta, Calvino se utiliza da mitologia grega como forma de melhor explicar a leveza na narrativa, com a determinação de Perseu, que era o único herói que poderia decepar a cabeça da Medusa, voando sobre sandálias aladas, e não olhando jamais diretamente para a face daquela Górgona, fazendo-o apenas pelo reflexo do seu escudo de bronze.
Perseu se sustenta pela leveza das nuvens e do vento, levando consigo a cabeça da Medusa num saco, e em casos extremos, a utiliza como arma contra seus inimigos. Hoje se poderia dizer que aquela “carta na manga” que o escritor tem, para neutralizar os inimigos da literatura.
Em seguida Perseu segue sua luta contra os monstros, derrotando um mostro marinho, libertando Andrômeda, depois faz o gesto que ficaria eternizado por Pilatos, na paixão de Cristo: lava as mãos.
Para desfazer-se da cabeça de Medusa, segue os versos de Ovídio, nas Metamorfoses, e a deposita (p. 18) em um ninho de folhas e algas, com a face voltada para baixo, para não deixar que a areia áspera produza sentimentos de chateação ou melindre, demonstrando a leveza do herói.
Calvino desabafa (p. 19) quando diz “Cada vez que o reino do humano me parece condenado ao peso, digo para mim mesmo que à maneira de Perseu eu deveria voar para outro espaço”, seria para mudar seu ponto de observação.
Ao citar Milan Kundera, Calvino lembra dos sofrimentos e agruras contidos na obra “A insustentável leveza do ser”, que constata a condição de opressão e do peso de viver, em qualquer classe social, abastada ou não.
No universo da literatura, outros caminhos podem ser percorridos, mas se a literatura não basta para explicar os sonhos, devemos correr atrás da ciência.
Na ciência atual parece que tudo está sendo transformado e entidades sutilíssimas.
Na informática, o software é a leveza, se comparado ao peso do hardware.
Na Segunda Revolução Industrial a leveza vem através dos bits das máquinas, que são manipuladas com fluxos enormes de informações.
Na poesia, “De rerum natura”, (p. 20) de Lucrécio, é a primeira e pequena grande obra poética com a percepção de leveza, cuja matéria é composta de minúsculos corpos invisíveis. A poesia do invisível e de potencialidades imprevisíveis.
Tanto em Lucrécio como em Ovídio, existe a leveza como paridade essencial entre todas as coisas, vendo o mundo fundamentado na filosofia e na ciência.
Calvino então cita uma das histórias contidas em Decamerão, de Giovanni Boccaccio, onde o poeta nada popular, Guido Cavalcanti aparece como um austero filósofo na frente de uma igreja, meditando entre sepulcros de mármore. Ao se confrontar com Betto e sua brigada de cavaleiros, levíssimo que era, apoiou-se num túmulo e deu salto, e “lá se foi”(p.24), esclarecendo que a leveza está associada à precisão e à determinação, que não aceita a imposição de um objeto sólido e nem mesmo a palavra “pedra” vai deixar pesado seus versos.
Na literatura através dos séculos, a tendência é fazer da linguagem um elemento sem peso “flutuando sobre as coisas como uma nuvem” (p.27) dotada de leveza, associada à precisão e à determinação, nunca é vaga ou aleatória.
Citando Cavalcanti, Calvino exemplifica três aspectos diferentes para a leveza:
a) Um despojamento da linguagem com significados de pouca consistência;
b) A narração de um raciocínio com elementos imperceptíveis e alto grau de abstração.
c) A imagem da leveza como algo capaz de pular facilmente com o uso da literatura.
Outro exemplo está em Shakespeare, quando o personagem Mercúcio (P. 30) entra em cena se expressando com sentimentos leves e suaves sobre o amor e diz: “Estás amando; pede a cupido as asas emprestadas/e paira acima dos vulgares laços”. No mesmo instante no qual Romeu havia considerado o amor como um peso que traz sofrimento, ao dizer: “Sob o peso ingente desse amor pereço”.
Ainda na peça “Sonho de uma noite de verão” (p; 32), a modulação lírica e existencial permite contemplar o próprio drama como se visto de fora, dissolvendo em melancólica ironia. Um tipo de gravidade sem peso, uma relação particular entre melancólica ironia.
Cyrano de Bergerac, (p. 33) na França, é considerado por Calvino como o primeiro escritor que apresenta, explicitamente, o atomismo ou o átomo do universo nas literaturas modernas, precursor da ficção científica e ainda mais pelas suas qualidades intelectuais e poéticas. Celebra a unidade de todas as coisas, combinando figuras de todas as coisas animadas ou inanimadas, abordando o problema da gravidade até o ponto de inventar uma série de sistemas para subir à lua, trazendo ao texto a leveza a fim de suavizar a realidade, e colocar beleza e poesia onde não existe.
Aos quinze anos, Giácomo Lepardi (pp. 36-37) resume a teoria de Newton escrevendo uma história sobre a astronomia, e ao discursar sobre o insustentável peso do viver, traduz a leveza da inatingível felicidade por meio dos pássaros, da voz da mulher que canta na janela e da lua, para comunicar sensações de leveza, silencioso e calmo encantamento.
A literatura tem a função existencial de buscar a leveza como aversão ao peso do viver, como pode ser observada em Xamã da tribo lidava com a precariedade da tribo, anulando seu peso do corpo transportado em voo a outro mundo, para outro nível de percepção a fim de encontrar forças para modificar a realidade, com faziam as bruxas, que voavam à noite sobre vassouras, numa época em que a mulher carregava o fardo de uma vida cheia de limitações.
A privação sofrida se transforma em leveza quando nas fábulas permite frequentes voos a outro mundo e reinos, onde as necessidades existências poderão ser magicamente recompensadas.
Sendo assim, a expectativa para o novo milênio é encontrar somente aquilo que seremos capazes de levar, se cultivarmos a virtude da leveza.
A missão do escritor, ao fazer uso da leveza, é escolher as palavras adequadas, de forma que elas fluam harmoniosamente entre si, estabelecendo um diferencial que é capaz de conquistar o leitor e permitir que este viva a sensação de suavidade que está sendo descrita.
Portanto, a leveza pode ser vista nos elementos do cotidiano com traços mais tênues e trabalhando para que a sincronia das palavras escolhidas proporcione um encantamento cognitivo no leitor.
2 – Rapidez
Essa é a segunda qualidade ou valor ou especificidade da literatura que Ítalo Calvino destaca em suas propostas, iniciando com a lenda antiga sobre o Imperador Carlos Magno (p. 45) que se apaixona por uma plebeia alemã, que irritava os barões da corte. Mas subitamente a mulher morre, fazendo com que aquele amor se torne mórbido, ao Imperador mandar embalsamar a donzela e colocar nos seus aposentos. O arcebispo Turpino, apavorado por achar que aquilo era bruxaria ou sortilégio, quis examinar o cadáver, achando na língua da moça um anel com uma pedra preciosa. Imediatamente o amor que o imperador sentia passou para o arcebispo. Turpino percebendo aquela situação desagradável jogou o anel no lago Constança. Carlos Magno então se apaixona pelo lago e nunca mais quis sair de perto das suas margens.
Esse tipo de história fascina o leitor, pelos aspectos da paixão de um velho por uma jovem, o aparecimento de um anel mágico – que se transforma no principal personagem, a obsessão mórbida pela virgem, e o amor por um lago. Em outras obras literárias de verso ou prosa os objetos fazem parte integrante do enredo, como Orlando furioso; o elmo de Mambrino; Robinson Crusoé etc.
O segredo, segundo Calvino (p. 48) está na economia da narrativa em que acontecimentos, independentemente de sua duração que facilite o entendimento e prenda o leitor o tempo necessário. Nem por isso defende que a rapidez tenha um valor em si a ser determinado. O prazer infantil de ouvir histórias, por exemplo, reside quando a narrativa tem as suas repetições em situações, frases e fórmulas (p. 49), já que, segundo o autor, a principal característica do conto popular é a economia de expressões nas peripécias mais extraordinárias relatadas levando em conta apenas o essencial (p. 50) sem subterfúgios ou narrativas cansativas. Ou seja, o tempo deve ser adequado e relativo para dar um encandeamento ao texto, conservando um ritmo, de modo que consiga manter aceso o desejo de se ouvir o resto.
Conta Calvino o conto de Boccaccio sobre a Senhora Oretta, a quem é oferecido carona no lombo de um cavalo durante um passeio cansativo, mas o cavaleiro conta tanta história sem pé e nem cabeça, que a madame solta essa frase: “Meu caro, senhor, vosso cavalo é um tanto duro de trote, pelo que vos peço, me deixeis a pé” (p. 52)
O cavalo é visto como um emblema da velocidade que marca a história da literatura, que vem fazendo ao longo do tempo uma reflexão entre o tempo físico e o tempo mental, tentando adequá-lo. Foi Galileu Gailei quem primeiro utilizou a metáfora do cavalo para designar a velocidade da mente, para coadunar o discurso com o raciocínio dedutivo.
Quando tratou da Leveza, Lucrécio via na combinatória do alfabeto o modelo da impalpável estrutura atômica da matéria (p. 58). Em Rapidez o autor cita Galileu, que via na combinatória do alfabeto o instrumento insuperável da comunicação, especialmente porque a literatura é comunicação que tem o tempo como uma riqueza ao seu favor, mas a economia de tempo é uma coisa boa, (p. 59) porque quanto mais tempo economizamos, mais tempo poderemos perder.
Como um exemplo negativo, Calvino cita Laurence Sterne, um romancista que abusa das digressões ou divagações – perda de tempo, que somente vai protelar a conclusão. Desde a juventude Calvino já seguia a máxima Latina “Festina lente” – apressa-te lentamente. Conclui (p. 61) que o êxito do escritor vai acontecer na felicidade de se conseguir empreender a expressão verbal, tanto na prosa quanto na poesia, pois é a mesma busca de uma expressão necessária, única, densa, concisa e memorável, mais fácil de atender nas obras mais curtas, como é o caso da literatura italiana.
Cita Jorge Luiz Borges (1899 - Buenos Aires, Argentina – 1986 - Genebra, Suíça) que se reinventou como narrador (p. 63), conseguindo de forma concisa, chegar ao infinito sem qualquer constrangimento.
Durante seus achados, vaticina sobre o temperamento de quem segue o destino de Saturno – os saturninos, devem ser os poetas, os artistas e os pensadores. É o caso dele.
Conclui a segunda conferência com outra historia, dessa vez de Chuang-Tsé, a quem foi pedido pelo rei para desenhar um caranguejo. Pediu cinco anos e não fez. Pediu mais cinco anos e no último dia pegou o pincel e praticamente num único gesto desenhou uma perfeição de caranguejo. Ou seja, faça no tempo certo e sem pressa, para que o seu caranguejo saia perfeito e na hora certa. Quem pensa só na velocidade se esquece da qualidade. A pressa ajuda menos e estressa mais.
Na literatura, a concisão é apenas um aspecto da rapidez na velocidade de pensamento.
3 – Exatidão
Para os antigos Egípcios a precisão da balança era simbolizada pela pluma que ficava como um peso num dos pratos, como o nome de deusa Maat, que Calvino diz que na literatura exatidão quer dizer três coisas importantes:
1 – Um projeto bem definido e calculado;
2 – As imagens visuais nítidas e memoráveis;
3 - Uma linguagem mais precisa possível, capaz de expressar pensamento e imaginação.
Calvino (p. 71) prefere falar o mínimo e escrever mais, pois escrevendo ele pode consertar o que precisa revisar das suas insatisfações, utilizando a literatura como a terra prometida, com a possibilidade de a literatura salvar a linguagem da epidemia do uso desenfreado da palavra.
Até as imagens foram contaminadas pela epidemia de quantidade, que reflete a bagunça do próprio mundo.
Tantas imagens sem forma ou significados se multiplicam, mas muitas se dissolvem como nos sonhos, e as que não se dissolvem causam estranheza e mal-estar.
Giacomo Leopardi (p. 73) que quanto mais vaga e imprecisa for a linguagem, será mais poética, e para se alcançar a imprecisão desejada é necessário a atenção extremamente precisa e meticulosa dos detalhes na escolha dos objetos, da iluminação e da atmosfera, flutuando nas sensações. Assim, o poeta do vago na literatura, como a arte de expressão infinita e complexa, pode ser exato ao que se deseja expressar, refletindo que através da imaginação é possível projetar o infinito, mas o espírito humano é incapaz de concebê-lo, e por isso contenta-se com o indefinido, conceito que vem desde o inicio da filosofia, como a ideia de infinito no espaço e tempo absolutos, para que as sensações indefinidas causem prazer.
A obra literária (p. 84) adquire um sentido que não é fixo, mas é vivo e dinâmico como um organismo que tem vida.
A escrita de Calvino tem duas vertentes (p. 88) uma que se move no espaço mental de uma nacionalidade desincorporada em forma abstratas e vetores de forças; e outra que se move cheio de objetos, buscandi criar uma equivalência verbal daquele espaço com palavras escritas ou não-escritas.
A produção literária está num universo observado pelo escritor e o leitor, dentro de uma perspectiva de causa e efeito diante das interdependências entre si, concentrando ideias que se aproximam entre os textos e suas interpretações, que até numa mesma obra a exatidão pode ser um conceito com dupla interpretação, por ser a ciência dos detalhes. Por isso, para Calvino, o justo emprego da linguagem (pp. 90-91) é aquele que o aproxima das coisas, com discrição, atenção e cautela, respeitando o que as coisas (presentes e ausentes) comunicam sem o recurso das palavras.
Um dos poucos que conseguiu se expressar muito bem sem letras foi Leonardo da Vinci, com seus códices passando uma linguagem híspida e nodosa, rica, mais sutil e precisa, pois se identificava melhor com a pintura do que com o jogo das palavras.
A fim de proporcionar ideias claras, a literatura apresenta uma visão mais objetiva, procurando ser o mais breve possível e encontrar as palavras do que se pretende expressar, mesmo sabendo que a exatidão nesse sentido não é absoluta, pois nem sempre a linguagem poderá expressar tudo que se pretende.
4 – Visibilidade
Calvino define a imaginação utilizando um trecho da obra A Divina Comédia, de Dante Alighieri (p. 97): “Chove dentro da alta fantasia”. Essa proposta seria então da constatação da fantasia, do sonho, da imaginação, dentro de um lugar aonde chove.
É importante a importância de que se reveste a imaginação visiva, nos Exercícios espirituais de santo Inácio de Loyola, referindo-se à contemplação da pessoa, ao imaginar o lugar onde está, quem e o que deseja contemplar. Trata-se também da visibilidade metafórica, como é o caso do pecado, que representa a metáfora de uma prisão.
Destaca ainda a imaginação como comunicação da alma com o mundo, como a forma de se explorar a verdade no mundo, captando o infinito do tempo e da sociedade, que só é capaz de ser vista ao observarmos a sua forma extensiva.
Entretanto é no momento que a imaginação visiva da alma do mundo atinge forma escrita que o leitor passa a ter contato com aquilo que seus olhos não conseguiam enxergar.
A Contra-Reforma e o catolicismo são destacados (p. 101) para mostrar que a igreja utilizava a comunicação visiva como um veículo de significados da arte sacra e ensinamentos, encurtando os limites da imaginação e realidade.
Quanto à literatura Calvino pergunta como se forma o imaginário de uma época, que visa antes à novidade, à originalidade e à invenção. O problema da prioridade da imagem visual ou da expressão verbal está mais inclinada para a imagem visual (p. 102).
A imaginação pode ter duas origens: a imagem formada a partir da palavra, quando descreve uma cena descrita; e o segundo, quando a imagem é formada na mente e se transforma em palavras, processo esse muito utilizado pelos poetas.
A escrita dos livros possue uma forma enriquecedora de conhecimento, mas pode deixar dúvida no raciocínio, cabendo então à imagem para ser a esclarecedora das dúvidas, tornando-se um meio eficaz de aprendizagem.
Para Calvino (p. 104) a primeira coisa que lhe vem a mente na idealização de um conto, é uma imagem, que vem carregada de significados, já que imagem é determinada por um texto escrito preexistente. A imaginação é algo vago que surge na mente, sem poder definir de onde vem cada fragmento, e pode coexistir com o conhecimento científico, ou como apenas conhecimento teosófico, onde não há união com a ciência.
A primeira Cosmicômica que Calvino escreveu, A distância da Lua (p. 105) é utilizada como exemplo de caminho livre para a fantasia do tipo onírico – relativo aos sonhos. A fantasia é uma espécie de máquina eletrônica que leva em conta todas as combinações possíveis, interessantes, agradáveis ou divertidas.
Gerações anteriores tinham seus repertórios de imagens reduzidas, às experiências que viviam como a “civilização da imagem”.
Diversos elementos concorrem para formar a parte visual da imaginação literária (p. 110): a observação direta do mundo real; a transfiguração fantásmica e onírica, o mundo figurativo transmitido pela cultura em seus vários níveis, e um processos de abstração, condensação e interiorização da experiência sensível, de importância decisiva tanto na visualização quanto na verbalização do pensamento.
Ao citar Balzac, em sua obra Le Chef-d'œuvre inconnu, mostra a sua teoria de que a imagem pode ser reciclada e colocada em um contexto diferente, quando o escritor realiza operações que envolvem o infinito de sua imaginação ou o infinito da contingência experimental, ou de ambos, com o infinito de possibilidades linguísticas da escrita. A fantasia do artista é um mundo de potencialidades que nenhuma obra conseguirá mostrar todas as suas possibilidades.
Portanto, para Calvino a Visibilidade está relacionada a processos imaginativos e a forma de expressar imagens, que antecede o texto no processo poético criativo, ordenado de significados e possibilidades em diversas leituras.
5 – Multiplicidade
O quinto tema da conferência, que não existiu, é uma sugestão de observar o romance contemporâneo como enciclopédia (p. 121), como método de conhecimento abordado como uma rede de conexões ente os fatos, pessoas e as coisas do mundo, e para seu estudo escolheu a obra do escritor Carlos Emilio Gadda, que durante toda a vida buscou representar o mundo como um todo, sem nunca separar a complexidade inextricável - Impossível de desatar; enredado, emaranhado, juntando elementos mais heterogêneos como sendo responsáveis por cada evento que ocorrem em sistemas reciprocamente condicionantes, unindo vozes dissonantes. Os romances de Gadda ficaram como obras incompletas ou fragmentárias, e cada objeto mínimo é visto como o centro de uma rede de relações, porque queria conhecer e inserir algo no real, portanto queria deformar o real. (p. 123). Mas a multiplicidade também traz consigo a incapacidade de conclusão.
Utilizando ainda os pensamentos de Flaubert, Raymond Queneau, Thomas Mann, T.S. Eliot e Joyce, Borges, George Perec e seus próprios textos, chega a concluir que a marca dos grandes romances contemporâneos é dar conta do conhecimento do mundo pela inteligência, por isso esse projeto deve ser incompleto, pois para ser pensado em sua totalidade, deve ser múltiplo em potencial.
Nem Proust consegue ver o fim do seu romance-enciclopédia (p. 125), mas não é por falta de planejamento, e sim porque a obra vai aumentando de tamanho por falta de um sistema vital conclusivo, numa multiplicação de infinita de dimensões do espaço e do tempo.
Na literatura, o leitor é cúmplice das fabulações do romance ou de outras formas de ficção, porque fica esperando sempre que o narrador use de todos os meios disponíveis para cumprir o objetivo de lhe contar uma história que tenha início, meio e fim, querendo sempre uma conclusão.
Na conferência Calvino pretendia dizer que em sua época a literatura estava repleta da ambição de representar a multiplicidade das relações em ato e potencialidade, o que poderia ser reprovada em muitos campos da atividade humana, mas não na literatura. (p. 127). Somente os poetas e escritores podem provar e mostrar que a literatura continuará a ter a sua função, com o desafio de tecer em conjunto diversos sabres e códigos numa visão pluralista do mundo.
Diferente da literatura medieval, que pretendia integrar objetivamente o saber humano numa ordem e densidade estável como na Divina Comédia , os livros modernos nascem da confluência da multiplicidade de métodos interpretativos, maneiras de pensar e estilos de expressão.
Calvino expressa seu desejo (p. 133), que no próximo milênio a literatura tome para si o gosto da ordem intelectual e da exatidão, a inteligência da poesia, juntamente com a sua ciência e da filosofia, como a de Valéry , que apesar de não ser romancista, era um crítico que sabia compreender os romances como nenhum outro.
Apesar de sua multiplicidade, Calvino diz que a escrita curta (p. 134) é contemporânea, confirmada até mesmo nos romances longos, como no seu hiper-romance, que desenvolvem um núcleo comum num quando que determina e é determinado por ela, com muitas histórias que se cruzam. Resume: (p. 135) a maneira pela qual a busca de um projeto estrutural e o imponderável da poesia torna-se uma só coisa.
Calvino ainda o que disse Raymond Queneau sobre outra ideia bastante falsa que vem sendo aceita é da equivalência que se estabelece entre inspiração e exploração do subconsciente e liberação, entre acaso, automatismo e liberdade.
Portanto, fica explicado por Calvido a sua apologia dobre o romance (p. 138) como uma grande rede, mesmo contrariando quem pensa que quanto mais a obra tende à multiplicidade, mas se distancia de quem a escreve, mas nós somo apenas uma combinação de experiências, informações, leitura e imaginações. O ideal seria que fizesse uma obra fora do self, saindo da perspectiva limitada do eu individual, para falar em outros “eus” semelhantes ao nosso, bem como falar o que não tem palavra. Assim já se manifestada Ovídio ao narrar a continuidade das formas e Lucrécio ao identificar-se com a naturezacomum a todas as coisas.
6 – Consistência
Infelizmente, antes de completar os 63 anos, Italo Calvino (1923-1985) faleceu e não desenvolveu esta última proposta. Deixo uma sugestão para que floresça na imaginação dos leitores a conclusão deste artigo, a partir das informações anteriores, em respeito ao autor.
Para mim, a Consistência que Calvino não deixou escrita, poderia ter sido uma mensagem de perseverança e constância, como uma força aos escritores, numa coesão das moléculas do imaginário criativo, para que continuem produzindo as fantasias, em obras repletas de Leveza, Rapidez, Exatidão, Visibilidade e Multiplicidade, com determinação, espessura, dureza e solidez, a fim de que a literatura dure enquanto existirem leitores e escritores sonhadores.
REFERÊNCIAS
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
João Bosco do Nordeste
Enviado por João Bosco do Nordeste em 05/03/2015