Como eu conheci Luiz Gonzaga
Num dia qualquer, porém muito especial, na década de 1960 na Praça da Matriz, nome comum em quase toda cidade, aconteceu um encontro inesperado, que hoje é muito bem lembrado e comemorado por mim e familiares.
Naquele logradouro existia o Hotel Cajazeiras, que não por acaso, era de uma senhora paraibana, de Cajazeiras, de nome dona Eudócia, muito mais conhecida como dona docinha, pela amabilidade e caráter humanitário que possuía, nunca negando apoio e comida a quem lhe precisava. Não por acaso, era minha querida tia Docinha.
Num determinado dia, já estava chegando ao ocaso, parou um carro na porta do hotel, com um motorista e dois passageiros. Aos seus cinquenta e dois anos, o motorista desligou o motor do veículo, abriu a porta e saiu em direção à entrada do hotel, onde estava sentada a dona Docinha, com um sobrinho de onze anos, que não por acaso era eu, conversando e debulhando feijão, coisa corriqueira nos hotéis daquela época. Era uma diversão para passar o tempo.
Muito educadamente o senhor disse:
- Boa tarde minha senhora!
A senhora não se levantou da sua cadeira de balanço e respondeu:
- Boa tarde! Quer hospedagem? Ainda temos vagas.
Ele a olhou ... olhou ... E depois de ter certeza, perguntou:
- A senhora é de Cajazeiras, na Paraíba?
- Sim. – Respondeu a senhora. Por quê?
- Esse nome do hotel me fez lembrar outro onde me hospedei há uns anos atrás, na Paraíba, exatamente em Cajazeiras.
- O senhor é Luiz Gonzaga? O rei do baião?
- Então é a senhora mesmo. Desde os meus 20 anos tenho viajado pelo Nordeste fazendo shows. Lembro que já me hospedei no seu hotel e a senhora nunca me cobrou, dizendo que queria ajudar este menino a vencer na vida.
- Lembro-me da sua história que desde os 18 anos tocava também outros de música, como Blues e outras músicas americanas, imitando também uns artistas famosos como Manezinho Araújo e Augusto Calheiros, aparecendo nos programas de rádio como calouro. Depois quando teve nota máxima no programa Calouros em desfile, de Ary Barroso, na Rádio Tupi do Rio de Janeiro, com músicas nordestinas.
- Eita que a senhora sabe realmente algumas coisas de mim. No Rio de Janeiro chegou meu irmão Zé Gonzaga (José Januário Gonzaga) também fugindo da seca e pedindo ajuda e passou a morar comigo.
- Há mais de 20 anos atrás o senhor já era conhecido como o maior sanfoneiro do nordeste do Brasil. Parece que também tocou com a sua sanfona com a dupla Genésio Arruda e Januário França. Naquela época gravou dois compactos com duas músicas cada em 78 rotações. Tenho aqui em Feira, lá dentro, junto da minha radiola.
- Já estou me sentindo em casa. Vamos pegar as bagagens, pois o show ainda vai ser amanhã à noite, nesse circo que está no fundo da estação de trem Matriz. – Disse o novo hóspede.
Com o menino seguindo os adultos, eles pegaram a bagagem e entraram. Ela ofereceu um cafezinho, depois de colocar num quarto com três camas e um guarda roupa de duas portas apenas, foram para o refeitório, e continuaram aquela conversa, que em muito interessava ao senhor Luiz, como ela o chamava. Na mesa ao lado sentou aquele menino curioso, e ela continuou.
- Sinta-se a vontade. Aqui na praça não tem quase barulho nenhum. No quarto tem ventilador. Vai conseguir dormir depois da sopa mais tarde um pouco.
- Que bom. A senhora ainda é casada? Lembro que alguém que se chamava Zé de moça, ou uma coisa parecida, morava naquele hotel.
- Deixa pra lá. Não quero falar desse assunto. – Pediu ela.
- Tá certo. Há mais de dez anos atrás me casei com Helena no Rio de Janeiro, mas dona Mariêta, a mãe de Helena, também morava com a gente em Cachambi. Tem uns seis anos que gravei uma música Baião minha e de Humberto Teixeira. Tive saudade de da minha terra Exu e voltei para rever os amigos e familiares. Em Recife conheci o meu amigo e sanfoneiro Sivuca e Zé Dantas, e estamos fazendo música juntos. Os pais de Zé Dantas queriam que ele continuasse estudando para ser médico, mas ele gosta mesmo é de tocar. Gravei também a música Asa Branca, feita com o amigo e parceiro Humberto Teixeira.
- Essas músicas são muito lindas. Todo mundo aqui em Feira e lá na Bahia (Salvador) gosta. Triste é aquela briga em Exu. A gente tá sabendo aqui pelas rádios.
- Verdade. Eu levei Helena e Mariêta para conhecerem aquela parte do meu nordeste, mas os Sampaios e os Alencar estavam em guerra. Tive de tirar de Exu a minha família, irmãos e pais para Crato, no Ceará e no ano seguinte levei eles para o Rio. Depois que Zé Dantas se formou em médico foi prestar residência no Rio de Janeiro também.
- Que coisa triste essa briga das famílias. – Suspirou dona Docinha.
- Fiquei muito preocupado, pois no nordeste se mata por qualquer coisa. Parece uma praga de Lampião. Ninguém perdoa ninguém. Anos depois tivemos aquele acidente de carro com os meus amigos tocadores Catamilho - João André do zabumba e de Zequinha, do triângulo. Mas uns dois anos depois tive de afastar Catamilho, ficando Zequinha, Jurai Nunes, o Cacau, para a zabumba que era tocada por Catamilho, e o baixinho Oswaldo - o Xaxado ou Salário Mínimo. Foi nesse tempo que levei Jackson do Pandeiro e sua mulher Almira, para morar com a gente no Rio.
- A gente não sabe como nasceu a Missa do Vaqueiro,. Aqui quase toda a cidade é católica e gosta daquela festa popular.
- Nem me diga. Meu primo Raimundo Jacó, era um vaqueiro muito famoso, e lá no sertão de Pernambuco, na serrita, ele foi encontrado morto covardemente, por isso criei a Missa do Vaqueiro, em homenagem a ele. Em 1956 eu pedi ao amigo e Deputado Federal Humberto Cavalcanti Teixeira, para criar uma lei que obrigasse as rádios tocarem mais músicas somente brasileiras. Parece que está dando certo. Estou feliz também, porque há uns dois anos conheci e conversei com Zé Marcolino, e já comecei a gravar algumas músicas dele. Muito bom. No ano passado entrei para a Maçonaria. Mas estou triste, porque morreu no início desde ano o meu amigo e parceiro Zé Dantas, muito novo ainda, uns dez anos mais novo que eu.
A conversa foi comprida demais, e foi chegando gente eu sem entender nada do que estava acontecendo, pele minha pouca idade e estudo, até que chegou a hora da sopa, e todos fomos para o salão do restaurante, onde tinha cinco mesas, não ficando nenhuma vazia, pois a notícia correu ligeiro e os mais velhos queriam ver o rei do baião.
Depois dali se acomodaram e foram dormir. Naquela época não existia ainda a televisão, e as pessoas dormiam cedo mesmo.
No dia seguinte, ao acordar perto das sete horas, ouvi um barulho musical vindo do quintal, debaixo de uma mangueira enorme. Era um sanfoneiro, um zabumbeiro e um triangueiro ensaiando para o show da noite. Cheguei perto, eles sorriram e continuaram tocando. Parecia coisa do céu, numa harmonia que eu pensei “pra quê estão ensaiando, se já sabem tudo de cabeça?”. Eu olhava aquele sanfoneiro com uma faca na cintura e a cara redonda, que parecia uma lua cantando. Ao terminar uma música, ele olhou para mim e perguntou:
- Menino, você gosta de música?
Eu respondi.
- Gosto sim seu Luiz! Quando o senhor chegou ontem eu pensei que o senhor era cangaceiro, mas percebo que o senhor não mata ninguém.
- Quer ir ver o show de hoje à noite? Começa oito horas e vai até nove e meia.
- Quero sim. Aqui do hotel vai todo mundo.
Ele disse que a dona do hotel não cobrava nada dele, desde Cajazeiras, e que iria dar ingresso a todo mundo do hotel, até a mim também. De tardezinha ele entregou o ingresso azulado a 11 pessoas do hotel. Era um papel feito numa máquina que chama de mimiógrafo.
Foi ai que eu conheci o Rei do Baião e comecei a gostar de suas músicas. Por isso é que até hoje continuo sabendo ouvir músicas de qualidade e que agregam cultura e cidadania.
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Outras informações:
Luiz Gonzaga esteve algumas vezes da sua extensa carreira em Feira de Santana nas décadas de 60, 70 e 80. O jornalista e colecionador de reminiscências feirenses Adilson Simas é uma das fontes mais confiáveis nesse sentido. Ele disse:
“Em 1973, ano do seu centenário de emancipação política, recebeu grandes personalidades. Luiz Gonzaga fez várias apresentações, desde a marquise do Abrigo Nordestino aos salões da Euterpe Feirense, foi uma dessas personalidades, que montado a cavalo desfilou pelas ruas da princesa ao lado de José Fróes da Motta e seguido por muitas jovens.”
Adilson Simas fotografou esse momento histórico. Link:
http://feirenses.com/luiz-gonzaga-feira-de-santana/
Pela Resolução nº 152/1984 Luiz Gonzaga recebeu o título de cidadão feirense na Câmara de Vereadores de Feira de Santana.
Adilson Simas fotografou "seu Lua" na porta da Câmara de Vereadores (1984). Link: http://feirenses.com/luiz-gonzaga-feira-de-santana/
Em 1954, Zé Dantas, o parceiro de seu Lua fez a música “Feira do Gado”, em homenagem à Feira de Santana. Em 18 de outubro de 1953, o Rei do Baião esteve em Feira para mais uma exibição no salão de festas do edifício Euterpe. No mesmo ano em que recebeu o título de cidadão feirense ele regravou a música com Fagner, para a honra dos feirenses.
João Bosco do Nordeste
Enviado por João Bosco do Nordeste em 02/09/2017