MADONNA - Por Rubem Braga em 1958 - Ai de Ti, Copacabana
Ai de Ti, Copacabana!
1. Ai de ti, Copacabana, porque eu já fiz o sinal bem claro de que é chegada a véspera de teu dia, e tu não viste; porém minha voz te abalará até as entranhas.
2. Ai de ti, Copacabana, porque a ti chamaram Princesa do Mar, e cingiram tua fronte com uma coroa de mentiras; e deste risadas ébrias e vãs no seio da noite.
3. Já movi o mar de uma parte e de outra parte, e suas ondas tomaram o Leme e o Arpoador, e tu não viste este sinal; estás perdida e cega no meio de tuas iniquidades e de tua malícia.
4. Sem leme, quem te governará? Foste iníqua perante o oceano, e o oceano mandará sobre ti a multidão de suas ondas.
5. Grandes são teus edifícios de cimento, e eles se postam diante do mar tal qual alta muralha desafiando o mar; mas eles se abaterão.
6. E os escuros peixes nadarão nas tuas ruas e a vasa fétida das marés cobrirá tua face; e o setentrião lançará as ondas sobre ti num referver de espumas qual um bando de carneiros em pânico, até morder a aba de teus morros; e todas as muralhas ruirão.
7. E os polvos habitarão os teus porões e as negras jamantas as tuas lojas de decorações; e os meros se entocarão em tuas galerias, desde Menescal até Alaska.
8. Então quem especulará sobre o metro quadrado de teu terreno? Pois na verdade não haverá terreno algum.
9. Ai daqueles que dormem em leitos de pau-marfim nas câmaras refrigeradas, e desprezam o vento e o ar do Senhor, e não obedecem à lei do verão.
10. Ai daqueles que passam em seus cadilaques buzinando alto, pois não terão tanta pressa quando virem pela frente a hora da provação.
11. Tuas donzelas se estendem na areia e passam no corpo óleos odoríferos para tostar a tez, e teus mancebos fazem das lambretas instrumentos de concupiscência.
12. Uivai, mancebos, e clamai, mocinhas, e rebolai-vos na cinza, porque já se cumpriram vossos dias, e eu vos quebrantarei.
13. Ai de ti, Copacabana, porque os badejos e as garoupas estarão nos poços de teus elevadores, e os meninos do morro, quando for chegado o tempo das tainhas, jogarão tarrafas no Canal do Cantagalo; ou lançarão suas linhas dos altos do Babilônia.
14. E os pequenos peixes que habitam os aquários de vidro serão libertados para todo o número de suas gerações.
15. Por que rezais em vossos templos, fariseus de Copacabana, e levais flores para Iemanjá no meio da noite? Acaso eu não conheço a multidão de vossos pecados?
16. Antes de te perder eu agravarei s tua demência — ai de ti, Copacabana! Os gentios de teus morros descerão uivando sobre ti, e os canhões de teu próprio Forte se voltarão contra teu corpo, e troarão; mas a água salgada levará milênios para lavar os teus pecados de um só verão.
17. E tu, Oscar, filho de Ornstein, ouve a minha ordem: reserva para Iemanjá os mais espaçosos aposentos de teu palácio, porque ali, entre algas, ela habitará.
18. E no Petit Club os siris comerão cabeças de homens fritas na casca; e Sacha, o homem-rã, tocará piano submarino para fantasmas de mulheres silenciosas e verdes, cujos nomes passaram muitos anos nas colunas dos cronistas, no tempo em que havia colunas e havia cronistas.
19. Pois grande foi a tua vaidade, Copacabana, e fundas foram as tuas mazelas; já se incendiou o Vogue, e não viste o sinal, e já mandei tragar as areias do Leme e ainda não vês o sinal. Pois o fogo e a água te consumirão.
20. A rapina de teus mercadores e a libação de teus perdidos; e a ostentação da hetaira do Posto Cinco, em cujos diamantes se coagularam as lágrimas de mil meninas miseráveis — tudo passará.
21. Assim qual escuro alfanje a nadadeira dos imensos cações passará ao lado de tuas antenas de televisão; porém muitos peixes morrerão por se banharem no uísque falsificado de teus bares.
22. Pinta-te qual mulher pública e coloca todas as tuas joias, e aviva o verniz de tuas unhas e canta a tua última canção pecaminosa, pois em verdade é tarde para a prece; e que estremeça o teu corpo fino e cheio de máculas, desde o Edifício Olinda até a sede dos Marimbás porque eis que sobre ele vai a minha fúria, e o destruirá. Canta a tua última canção, Copacabana!
Rio, janeiro, 1958
BRAGA, Rubem. (1996) Ai de ti, Copacabana. 13ª. ed. Rio de Janeiro: Record.
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Rubem Braga nasceu em 12 de janeiro de 1913, em Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo. Mais tarde, com 13 anos de idade, publicou seu primeiro texto, no jornal O Itapemirim, do Colégio Pedro Palácios.
Em 1936 lançou o livro O Conde e o Passarinho, seu primeiro de crônicas.
Sob as influências do Modernismo, escreveu textos irônicos, com temática do cotidiano e críticas sociopolíticas, tornando-se um dos mais importantes cronistas brasileiros.
Entre 1961 e 1963, foi embaixador do Brasil no Marrocos.
Em 1967, fundou, junto do escritor Fernando Sabino (1923-2004), a Editora Sabiá.
Outras obras foram publicadas em diferentes jornais e revistas, pela qualidade e o lirismo dos textos, exercendo influência no gênero aos novos escritores, contistas, cronistas e poetas, até os nossos dias.
A seleção de crônicas no livro Ai de Ti, Copacabana! foi feita pelo próprio autor de abril de 1955 a fevereiro de 1960, abordando variedades de temas como o tempo, amores, viagens, encontros e desencontros, com leveza de linguagem do cotidiano, em contraste com a forte carga emocional das crônicas, fazendo o leitor se emocionar, mostrando sabedoria e uma evolução na construção de uma bela literatura, revelando sua força poética, como um alerta ou premonição do que viria acontecer com o bairro e a praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, que observava uma mudança dos vínculos da cidade com a natureza, além da degradação das relações humanas, já que a sua memória de nostalgia afetiva ainda estava nos tempos de infância nas fazendas, rompendo aquela relação de identidade.
Faleceu em 19 de dezembro de 1990, no Rio de Janeiro.
Rubem Braga
Enviado por João Bosco do Nordeste em 06/05/2024